terça-feira, dezembro 27, 2016

os corredores habitados



intervalo sonoro – redundância dois

 pequena mancha do mundo, nem tudo é ausência, nem tudo foge, nem tudo é silêncio, o saxofonista ondulava suspenso das notas, repousada memória na frescura do momento, os ritmos penetram o cérebro, depois o corpo, ou este e depois aquele, interrogação presa no escuro como em bico de haste a rosa fechada; desprendido, interrogo a circunstância de ali estar no interior daquela mancha de som e evasão, entretanto cenário residual de colorida atmosfera, inefáveis auscultações dos sentidos possíveis e fiáveis planam sobre a mente cumprindo o seu dever de questionamento; amadureço aqui no plano interior da consciência reclamando alguma virtude ou inibem-me as claridades sonoras a iminência dos desastres? no ângulo vertido do imaginário sublinha-se a desagregação dos conteúdos; estou preso na infinita circunstância de ser eu no lado de dentro, e preso por ser o lado outro por fora desse singularíssimo eu; por fora sou claro para mim próprio, tenho olhos, mãos, pernas, e tudo isso coberto por uma pele que me desenha no espaço e me enfeitiça; por dentro, a obscuridade insuportável do fenómeno, que me enfeitiça de segredos, perseguindo-me como lâmpada de desejo apagada, circunlóquio na avareza dos sentidos, limite e absorção ilimitada; apago a memória e vegeto o entendimento, desgoverno os circuitos ou instâncias do prazer, desniveladas atmosferas envolvem os pântanos em que me concentro; sobre o arco-íris da fantasia, a música; dentro das esferas do silêncio, algumas tristezas sugando os apetites; galgando os olhos distraídos, movimentos vertidos para sons; na imobilidade corporal, gravitação dos despojos; sensação dos outros em redor, penetração da minha lucidez; tentáculos de corpos subjugando-me, incrédula leveza do meu arbítrio; redemoinho de movimentos, fricção nos preâmbulos do desentendimento; máscaras subvertendo o tangível, a ficção inoculando o real? – interrogo-me , naquela refracção dum espelho musical sob o esplendor duma vertigem de sonoridades; recobro da infância o mundo agora invisível que à distância perpetuada por tangos, valsas e Tico-Tico no Fubá, exultava no peito florido de pimpolho   


  

quarta-feira, dezembro 21, 2016

os corredores habitados



intervalo sonoro, redundância um


 chegado lá, sob o pranto escuro da noite, os olhos espraiando-se sobre calçadas e águas, riscos sonoros deixados sobre elas, as calçadas, e vigílias soletrando os segredos marítimos, sobre o mar pasmado de solidão, a planura doce da superfície enigmática e vegetal da ria, deixo rolar os meus ouvidos ao sabor da linfa nocturna, rasto dos apitos, do chapinhar das minúsculas ondulações dos pequenos botes, da luz dando no espelho d´água, esbracejados reflexos como lantejoulas  suspensas em fios de prata, entre o mar vago e nocturno, lágrimas dos residuais tempos de alguma meninice; e lá está, rente ao vaguear, o grande barco marítimo, absorvido pela fluorescência de miríades de luzes desenhando a silhueta opalina sobre o fundo de um avental negro de viúva; o mastro, dirigido em agulha festiva às estrelas, resplandece como lágrima pendente para o subterrâneo das águas, festival de fogo-de-artifício em imersão. Oiço o tu-cá, tu-lá, de vozes alongando o espaço; entro, no colorido verniz da algazarra pressente-se a noite em vibração; instalam-se instrumentos, mãos ágeis retiram das cordas rasgões sonoros, sopros dialogantes soltam-se das curvas dos metais, um baterista ensaia em grinalda de gestos os contornos graves dos ritmos; é noite de claridades sonoras e apertos; certos, já se arrumaram recostados nos cadeirões, eles e elas, sorrindo afoitadamente,  os olhos enrolam o espaço com visceral prazer, jubilo de agradecimento aos próximos actos; espaço sem sangue, sem detritos, sem desordens nos rostos; afagam-se os tampos das mesas, contido sinal de apaziguamento; soltam-se os ritmos, as cadências musicais desprendem-se da atmosfera quente, pulverizada de sensualidade amena, e anoitam nos ouvidos; as enfeitadas mesas, de copos e garrafas, ilustram as salvas dos bebedores, enquanto o trio se eleva em solos abertos à imaginação e à catarse; o saxofonista ronda as mesas filtrando acordes nos corações embevecidos; há palmas e estrépitos naquela pequena mancha sonora do mundo. 



domingo, dezembro 18, 2016

os corredores habitados




intervalo sonoro

nada mais quero senão uma flor ensaiando um ritual de dança; sonoridades e transparências, casa de música, bar, cadeiras e mesas, vertigem, zumbido de copos, baixo de cordas, sax alto, contrabaixo, contorções corporais, vibrações acústicas, colcheias floridas, rostos, semblantes mornos, abandonados ombros, vinho, casacos, penteados e barbas, semibreves, mínimas e máximas, vozes e sorrisos, caleidoscópio de brilhos vermelhos, verdes, azuis, laranjas, arco-íris de luz, sotaques, outras bebidas, várias, balcão, coqueteles, distendida algazarra, sururu, amplificadores, colunas, palhetas, paisagens inertes de pendurados quadros, bandejas no ar, favo de mesas, circulações mínimas, espaços em gancho, tostas, espuma efervescente, lavabos, casa de banho, senhoras e homens, prateleiras, vidraças, chimbau, tom-tom, espelho de mar, piano acústico, teclas, ritmo, bateria, metal, pratos vibratórios, ligas sonoras, sopro, cordas, caixa, arco, apitos, guizos, pernas torcidas, cruzadas, braços resolutos, narizes expectantes, oscilantes olhos, garrafas, bombo, polegares em riste, acenos, tossidelas, facas e garfos, queijo, manteiga, apetite, arrastar de cadeiras, caixa registadora, bolos regionais, notas musicais, notas papel, moedas, carteiras, beijos, abraços, olá´s de estar vendo, galanteios, acordes, fotos, telefilmes, se canseiras não sei, despreocupações, palmas, pagamentos, entradas e saídas, despedidas, balbuciações, faiscação de olhos, orelhas murchas, pesados passos, saias calças e botas, xailes e blusas, penumbras vermelhas, aromas dispersos, pernas altas, baixas, mãos doces, grisalhos cabelos, sonos embotados, flores de pasmo, rituais errantes, fábulas iridescentes, ritual, contradança   




quinta-feira, dezembro 01, 2016

os corredores habitados




as caixas de ressonância emergem em socalcos e os silvos da paixão sacodem os mostruários descoloridos para os cantos da casa , amostras dos futuros andam nas asas das andorinhas; cortejando o absoluto enterram-se os olhos na escuridão, o abandono é uma imersão numa caveira de sonho; - a grande janela do ateliê, porta envidraçada, deixa os olhos penetrarem a imensidão, o céu azul celeste vivificado pela adrenalina luminosa engasta-se na fantasia da paisagem, dá-lhe um fulgor de lâminas, quase a corrompe, com os dardos da luz atirados de encontro às pequenas folhas verdes trementes das amendoeiras, ou ainda as versáteis manchas de nuvens pairando numa calma leveza de soberana presença; ressonâncias engalanadas batendo nos olhos até ao infinito deslocamento da mente, cornucópia de sons e alabastros, luzernas abrindo caminho com o triciclo, aquele que sobrevive na amargura da infância, sobre os trilhos brilhantes que nos afagam